quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Nos 30...

Não me lembro do dia em que nasci.

Não sei como estava o tempo, qual era o alinhamento dos astros, que bons ou mais augúreos me vaticinavam os deuses. Pouco vos posso falar sobre os meus primeiros anos, porque não me lembro deles. O pouco que aflora à minha memória, olhando para fotografias antigas, mostra-me uma criança normal e doce, um tanto ou quanto irrequieta. E uma mãe cuidadosa e meiga.

Começo a lembrar-me melhor quando tinha quase quatro anos e me entra, casa a dentro, a minha mãe com um bebé nos braços. Que chatice! Ter que ajudar a tratar do puto, dividir coisas, espaços. Não foi uma adaptação fácil. Não dei pulos de alegria. A minha mãe, trabalhadora e dona de casa, contava comigo para a ajudar. A vida, ia-a tornando mais fria e foi assim que me ensinou a viver. Com coragem. Sem medo. Pronta para tudo.

Na escola, sempre fui das melhores da turma, muitas vezes a melhor, digo-o sem falsa modéstia, e portava-me sempre bem. Nunca chumbei um ano, nunca tive uma negativa no final do período. As professoras gostavam muito de mim. Mas nos intervalos, era malandreca. Talvez até um bocadinho maria rapaz. Sempre tive mais facilidade em fazer amigos do que amigas. Nós, as mulheres, eramos demasiado complicadas para mim. Ainda somos, às vezes.
E assim cresci. Com dez anos, o puto que lá apareceu em casa já tinha seis, já ia para a escola, e eu já estava um bocadinho mais livre das obrigações em casa. Nova escola, novos amigos, novas malandrices. Muito joguei ao berlinde, muitas vezes lancei o pião (e não era nada má, deixem-me que vos diga), algumas vezes saltei ao elástico. Ainda um bocadinho maria rapaz. Novo irmão. Não! Vai começar tudo de novo! Mais um para cuidar, para partilhar espaços, coisas, atenções. Que chatice!!!

Os anos passaram, os bons amigos ficaram, decisões foram tomadas. Chegada ao 12º ano, não fui para a faculdade. Fui trabalhar. Durante dois anos convivi com gente com necessidades diferentes, com vidas diferentes, com realidades diferentes. Cresci. Aprendi. Ao fim de dois anos, decidi que sentia falta do estudo. À revelia dos meus pais, candidatei-me à faculdade. Entrei. Um novo mundo. Novas vivências, novos amigos. Lisboa, a minha outra cidade. Foram dos melhores anos da minha vida. Mas, se soubesse o que sei hoje, tinha feito muito mais. Rido mais, brincado mais, estudado menos. Queria despachar aquilo rápido, queria trabalhar. E quando as circunstâncias da vida obrigaram o meu pai a tentar a sorte lá fora, em Angola, tornei-me ainda mais chata. Eu diria quase impossível de aturar. Sei que os meus colegas da faculdade passaram um mau bocado comigo. Mas foi como levarem-me um pedaço de mim. O meu pai, para mim, era tudo. Ainda é. A minha mãe precisou de mim mais do que nunca. Poderei dizer que, muitas vezes, fui o homem da casa. Custei a adaptar-me. Mas o meu pai voltou. A coisa não correu muito bem lá por Angola, é verdade, mas ele voltou. Para assumir a sua família e me pôr o sorriso nos olhos outra vez.

Namorei, claro que sim. Faz parte, não é? Fui amada e amei, não necessariamente quem me amava. Tive ilusões e desilusões. Tive a tal relação séria. Ele era dedicado, paciente, amoroso. Mas não era o tal. Acabou. Numa altura em que toda a minha vida estava prestes a mudar. O meu pai decide sair novamente de Portugal e a minha mãe vai com ele. Desta vez iam tentar o Canadá. Estava no último ano da faculdade. Novo choque. Novas responsabilidades. Novo processo de adaptação a uma nova realidade. Se o meu irmão mais velho já tinha 18 anos, o mais novo tinha 12. A casa, eles, um mais que outro, seriam, agora, minha responsabilidade. Ninguém me pediu. Mas senti que era minha obrigação. Não poderia fazer de outra forma. Eram os meus pais, os meus irmãos, a minha família. Predispus-me para conhecer o tal puto de 12 anos que morava lá em casa. Passei a ser a sua encarregada de educação, a perceber o seu mundinho, as suas necessidades, as suas fragilidades. Queria que ele, tal como o outro, sentissem o menos possível a ausência dos meus pais. Acho que consegui. À custa de muita coisa, eu sei. À custa da saúde, à custa do amor, à custa de uma carreira profissional, que poderia ter arrancado. Ou não. Não sei. Também não interessa. Acredito que tudo o que aconteceu tinha que acontecer. Para me trazer até aqui.

Depois de dois anos de luta contra uma doença que me tirou a alegria de viver, renasci. Sim, esse é, literalmente, o termo. A Sílvia alegre e apaixonada pela vida voltou. Mais descontraída, mais viva. Estive sempre disponível para os meus irmãos que, neste momento da minha vida, foram tudo. Bem como muitos dos amigos que trago no coração hoje. Passei muitas fases na longa recuperação, mas passava por tudo de novo se soubesse que ia estar aqui, hoje, rodeada de quem mais gosto, e de quem me faz feliz. Sou uma pessoa abençoada por Deus, se me permitem a referência. Tenho dois pais que me amam e que se amam, dois irmãos que fariam tudo por mim como eu faço por eles. Uma família como poucas, diria eu, apesar das distâncias. Contra ventos e marés, o nosso amor vence tudo. Em cada momento mais assumido e mais presente. E tenho os melhores amigos.

Hoje, sou uma pessoa realizada. Trabalho em publicidade, uma área de que gosto,apesar de não estar a desempenhar funções para as quais estudei. Estudo, coisa que, como muitos sabem, adoro fazer. Mais. Estudo História, uma paixão. Até onde me vai levar, não sei. Ao contrário da primeira viagem, esta marinheira não se preocupa muito com o próximo porto de paragem. A viagem apresenta infinitas possibilidades para me preocupar com a hora de chegada. Gostava de vir a dar aulas. Pela importância que a educação tem na formação das crianças. Pela possibilidade de fazer crianças felizes. Mas de momento, vibro com cada coisa que aprendo. Quase me torno chata ao falar disso. Quase...

E pronto. A minha história dos últimos 30 anos, está aqui contada, em traços gerais.Sou isto que aqui leêm. Orgulhosa, fria, dura, sofrida, por vezes cruel. Mas também amiga, dedicada, sensível, romântica, meiga. Muitas vezes frágil. Nunca arrependida. Sobretudo, apaixonada. Das mais diversas formas. Pela vida. Por vocês. Por ti.Venham mais 30!!!
12/05/2008
Porque precisei de o reler para me lembrar que sou uma privilegiada...

1 comentário:

Nãosesa disse...

Minha Deusa espero um dia ter o privilégio de poder entrar nas tuas memórias! E venham mais 30 'pa gente! :D